quarta-feira, setembro 27, 2006

O PROBLEMA DAS FONTES: JORNAIS & REVISTAS

Porque é que o problema das fontes é, de facto, um problema? Vejamos um exemplo.

Na edição de Setembro de 2006, a revista MAGAZINE – Grande Informação publicou um artigo da autoria José Manuel Simões sobre os judeus. A páginas tantas, nomeadamente na página 39, é feita uma referência aos judeus portugueses. Entre o poeta Luis Vaz de Camões, a poetisa Emma Lazarus e o matemático Pedro Nunes, lá aparece o Prémio Nobel da Medicina Professor Egas Moniz. Sobre este escreve-se o seguinte:

«O conselheiro real Egas Moniz era um judeu safardita português, um seu descendente, o professor Egas Moniz, passados oitocentos anos, ganhou, em 1949, o primeiro Prémio Nobel da Medicina para Portugal por ter descoberto a lobectomia e a angiografia (...)»

Deixemos para mais tarde o facto de Egas Moniz ter sido judeu. O que nos interessa é ver que, mais uma vez, se confunde tudo. Na verdade, Egas Moniz ganhou o primeiro, e único, até hoje, Prémio Nobel da Medicina para Portugal por ter descoberto somente a leucotomia pré-frontal (e não a lobectomia, ou lobotomia). Vamos também deixar para mais tarde a discussão sobre os propósitos desta sistemática confusão entre leucotomia e lobotomia que não é de todo acidental e muito menos desprovida de intenções. O que interessa agora é perceber que as fontes estão quase sempre na base da propagação da falácia. E a falácia, aqui, não é do jornalista que muito provavelmente consultou fontes supostamente credíveis. Mas sim das próprias fontes. Por isso é que elas são, de facto, um problema.
O PROBLEMA DAS FONTES: AS ENCICLOPÉDIAS (II)

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Enciclopédia Universal Grolier (Grolier Portugal)

A versão original da Enciclopédia Universal Grolier é espanhola e data de 1977. Um ano mais tarde foi editada em Portugal. O corpo editorial é muito vasto e é composto naturalmente por espanhóis. Na edição em língua portuguesa participaram 13 pessoas (3 licenciadas em Direito, 3 jornalistas, 1 professor, 3 licenciadas em Ciências Sociais e 3 em Letras) sob a supervisão geral de Maria Carneiro da Cunha, licenciada em Direito.

- Lobotomia: não existe

- Leucotomia: f. Tratamento cirúrgico de algumas psicoses graves que consiste em seccionar as fibras nervosas que se dirigem ao córtex do lobo central. O mesmo que lobotomia prefrontal [1].

Egas Moniz, António (1874-1955) Médico e diplomata port. Após a I Guerra Mundial presidiu a delegação port. à Conferência de Paz de 1918. Aperfeiçoou [2] a radiografia dos vasos sanguíneos do cérebro (angiografia) e criou um método cirúrgico (lobotomia préfrontal [3]) para tratamento de certas psicoses. Prémio Nobel da med. em 1949.

Notas:

[1] Termo híbrido entre leucotomia pré-frontal e lobotomia frontal (= confusão). [2] O verbo não foi bem escolhido. Veja-se o significado do verbo – v. tr. tornar perfeito, acabar, melhorar; v. refl. corrigir-se, emendar-se. A angiografia cerebral foi uma técnica gizada originalmente, do princípio ao fim, por Egas Moniz e seus colaboradores. [3] A mesma confusão que em [1] bem como nos remete para uma entrada – lobotomia – que não existe.
O PROBLEMA DAS FONTES: AS ENCICLOPÉDIAS (I)

Por princípio as enciclopédias estão na linha da frente da pesquisa biográfica. Em muitos casos a pesquisa começa e acaba aí mesmo. São quase fontes únicas sem qualquer correspondência ou leitura horizontal. Por definição as enciclopédias são obras que circulam um vasto conjunto de conhecimentos com o fim último de educar. Essa é, aliás, a etimologia da própria palavra: do Gr. égkyklos, que significa circular + paideía, que significa educação. São precisamente estes calhamaços do conhecimento que, de alguma forma, vão estruturando a memória colectiva em relação a uma obra, a um homem ou a um acontecimento.

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Mini-Enciclopédia (Círculo de Leitores)

Sob a direcção de Manuel Alves de Oliveira e de Maria Irene Bigotte de Carvalho, com revisão de Almiro Morais, a Círculo de Leitores publica em 1993 a Mini-Enciclopédia, tendo como base a Lexicoteca – Moderna Enciclopédia Universal. Num único volume de 838 páginas, esta obra surgiu com a «intenção de criar um instrumento de trabalho (essencial para o estudante, para o professor, para especialistas de diferentes áreas, para o leitor em geral), companhia de outras leituras, de outros estudos – ao qual se recorre para relembrar um nome, precisar uma data, acentuar um facto.» Vejamos o que nos interessa.

- Lobectomia (em vez de lobotomia) [1]: s. fem. Ablação de um lobo nos hemisférios cerebrais [2].

- Leucotomia: s. fem. O m. q. lobotomia [3]. Secção de vias nervosas do lobo frontal do cérebro [4]. Foi introduzida esta intervenção cirúrgica, em 1935 [5], por Egas Moniz, no tratamento de graves doenças psiquiátricas.

- Moniz, António Caetano de Abreu Freire Egas: Neurologista port. (Avanca, Estarreja 1874 – Lisboa 1955). Prof. na Univ. de Coimbra desde 1902, em 1911 passou a ocupar a cadeira de Neurologia na Faculdade de Med. de Lisboa. Em 1917 foi min. dos Negócios Estrangeiros. Em 1927 efectuou a 1.ª angiografia cerebral humana. Em 1938 [6] concebeu e executou uma intervenção cirúrgica cerebral, a leucotomia pré-frontal [7], depois largamente utilizada no tratamento de certas psicoses graves, o que lhe valeu o Prémio Nobel da Med., em 1949, partilhado por W. R. Hess.

Notas:

[1] Aqui aparece lobectomia mas na entrada “leucotomia” já faz referência à lobotomia. [2] O substantivo ablação é demasiado genérico; não faz referência à localização – lobo frontal – generalizando para o hemisfério cerebral. [3] Primeiro, leucotomia não é o mesmo que lobotomia (ver aqui). Segundo, quando vamos procurar a entrada “lobotomia” ela simplesmente não existe (aparece como “lobectomia”). [4] A localização de corte é o lobo pré-frontal e não o frontal. Daí a técnica designar-se por leucotomia pré-frontal. [5] Em Novembro de 1935 é realizada a primeira leucotomia pré-frontal experimental. A apresentação dos resultados à comunidade científica só se faz em 1936. [6] Não foi em 1938 mas sim em 1936. A data proposta é inconsistente com aquela apresentada na entrada “leucotomia”. [7] Faz referência correctamente à designação da técnica – leucotomia pré-frontal. Mas na entrada “leucotomia” faz referência ao lobo frontal e não pré-frontal.

Comentários:

1. Em nenhum dos casos é referido o nome de Walter Freeman.
2. Inconsistência de informação, nomeadamente nas datas. Na entrada sobre “Egas Moniz” refere a leucotomia pré-frontal como técnica concebida e executada em 1938 e na entrada “leucotomia” refere que a técnica foi introduzida em 1935. Em ambos os casos, a data correcta é 1936.
3. Confusão generalizada entre leucotomia, lobotomia, frontal e pré-frontal. Quem consultar esta Mini-Enciclopédia fica a saber que Egas Moniz inventou a leucotomia em 1935/1938 (?) e que a leucotomia é o mesmo que a lobotomia. Para quem queria fazer deste volume um instrumento «ao qual se recorre para relembrar um nome, precisar uma data, acentuar um facto», só podemos concluir que neste propósito e neste caso, faz um péssimo trabalho.

terça-feira, setembro 26, 2006

O PROBLEMA DAS FONTES

Num comentário à obra Vida de Aristóteles de António Pedro Mesquita (Edições Sílabo, 2006), José Pacheco Pereira escreve, no Abrupto: «(...) O que nela se aprende não é apenas sobre Aristóteles, mas também sobre a fábrica de uma biografia antiga, as fontes, os textos, os boatos, os fragmentos, as querelas de autoria e de identificação, as versões próximas ou longínquas ao original. Este aspecto, sem desmerecer a qualidade da própria biografia, ensina-nos muito sobre como se investiga a partir de uma realidade que os anos fragmentaram, dispersaram e corromperam, e isso diz-nos muito sobre o que o tempo e a história fazem a uma obra e à memória de um homem.» O mesmo problema ocorre com Egas Moniz. As fontes secundárias foram-se produzindo com base em fontes secundárias (num total despreza pela fontes primárias, quanto mais não fosse para verificar a veracidade da informação) e dessa forma fomos assistindo ao longo do tempo a uma deformação da realidade e à criação de uma imagem que serve unicamente causas sociais absolutamente perniciosos. Resolvi por isso fazer uma coisa muito simples. Peguei no maior número possível de dicionários biográficos e enciclopédias, e fui pesquisar o dizem sobre a leucotomia, a lobotomia e sobre António Egas Moniz. Este vai ser o princípio. Depois irei centrar-me na Internet. E depois nos manuais escolares. E, finalmente, num livro - Great and Desperate Cures de Elliot Valenstein - amplamente divulgado, que me parece paradigmático da forma como o erro se propaga a partir de uma fonte secundária que fragmentou, dispersou e corrompeu as fontes primárias, e passou a assumir o estatuto de fonte primária para outros livros, estudos e cursos pré e pós graduados.

sexta-feira, setembro 08, 2006

EGAS MONIZ E A LOBOTOMIA (OU SERÁ LEUCOTOMIA?)

A Colecção "Grandes Figuras Portuguesas" do Diário de Notícias homenageou o médico Egas Moniz com a edição no dia 7 de Setembro de 2006 de uma moeda comemorativa. Como sempre, as moedas vêm acompanhadas de um pequeno cartão sobre o homenageado (ver imagem em cima). O de Egas Moniz dizia o seguinte:

«O professor Egas Moniz revelou ao mundo algumas das maiores descobertas, através dos seus estudos e observações na área da medicina. Pela sua mão surgiu uma importante intervenção cirúrgica ainda hoje designada por Lobotomia Pré-Frontal e também a descoberta da Angiografia Cerebral Humana, que representou um grande contributo para a medicina.
No ano de 1949 o seu trabalho foi laureado pelo Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina.»

Porém, as boas intenções do DN em relembrar Egas Moniz como uma grande figura portuguesa vêm devidamente acompanhadas das respectivas falácias que ao longo do tempo a literatura secundária de autores incompetentes vem introduzindo na nossa memória colectiva. Vamos cingir-nos ao texto. Devo dizer que é a primeira vez que vejo escrito na imprensa «Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina» (e não Fisiologia e Medicina, como é vulgar escrever-se), uma tradução correctíssima do original, o que demonstra algum rigor. E digo algum porque de facto Egas Moniz partilhou o prémio com Walter Wess, logo o correcto é dizer que Egas Moniz foi laureado com 1/2 Prémio ou então que partilhou o Prémio com Walter Wess, que é a forma mais elegante. De facto, o prémio é só um. E ele é dividido consoante o número de lauredos. Neste caso, em 1949 a Fundação Nobel resolveu atribuir o Prémio Nobel da Medicina ou Fisologia a duas personalidades - Egas Moniz e Walter Wess - pelo que cada um recebeu metade do prémio. Aliás, é desta forma que é referida a atribuição do prémio a estes dois cientistas no sítio da Fundação Nobel (ver aqui).
Por outro lado, e aquilo que mais nos interessa, é o seguinte excerto: «Pela sua mão surgiu uma importante intervenção cirúrgica ainda hoje designada por Lobotomia Pré-Frontal». E aqui começam as falácias. É bastante frequente misturar-se leucotomia com lobotomia e pré-frontal com frontal. Podia tratar-se de uma simples confusão mas não. Esta confusão foi introduzida para servir fins sociais bastante perniciosos. Mas vamos começar pelo princípio. Porque é que leucotomia pré-frontal e lobotomia frontal não podem significar o mesmo? Primeiro, porque em termos etimológicos significam coisas diferentes. Leucotomia vem do Grego leukós, que significa branco, + tomé, que significa corte, ou seja, corte da substância branca do cérebro. O substantivo pré-frontal refere-se à localização em que se procede ao corte da substância branca, isto é, leucotomia pré-frontal significa corte da substância branca da porção pré-frontal do cérebro. Por outro lado, lobotomia vem do Grego lóbos, que significa porção ou parte, + tomé, que significa corte, ou seja, corte de uma parte ou porção. O substantivo frontal que se segue refere-se à localização, isto é, lobotomia frontal significa corte da porção frontal do cérebro. Se etimologicamente significam coisas diferentes, em termos técnicos também. A leucotomia pré-frontal é muito mais específica do que a lobotomia frontal. Outro pormenor importante é que a leucotomia é feita através da trepanação do cérebro e a inserção na substância branca da porção pré-frontal de um instrumento inventado por Egas Moniz e designado por si de leucótomo. Já a lobotomia frontal é feita através da inserção, com uma batida leve de um martelo, de um instrumento em tudo semelhante a um picador de gelo, através da parte superior das órbitas (e por isso se diz que o acesso é trans-orbital), seguido de um movimento lateral rápido para romper as fibras. Ainda outro pormenor, talvez o mais importante, é que a leucotomia pré-frontal foi inventada por Egas Moniz e a lobotomia frontal foi inventada por Walter Freeman (com base nos princípios da leucotomia, naturalmente).

Um outro aspecto interessante é que, curiosamente, a leucotomia pré-frontal foi pouco praticada em Portugal, ao contrário de outro países que a aplicaram em grande número como Itália ou Inglaterra. No entanto, foi nas Américas que teve maior divulgação. Mas atenção. Ficou-se pela divulgação porque se eventualmente num primeiro momento a leucotomia pré-frontal foi a técnica executada, depressa a lobotomia frontal tomou o seu lugar por iniciativa de Freeman. Na verdade, foram feitas milhares e milhares de lobotomias frontais contadas entre os Estados Unidos da América e o Brasil. Fica para a história o «lobótomo», um carro minimamente equipada em que Walter Freeman se deslocava pelo país para divulgar e popularizar a lobotomia frontal e, obviamente, lobotomizar quem estivesse disposto a arriscar a cura. Não é difícil de pressupor que Freeman apresentava a lobotomia como a boa nova, o milagre da medicina. E também não é difícil pressupor que Freeman, um tipo inteligente, se protegia quanto aos perigos desconhecidos da técnica dizendo que era coisa inventada por um neurologista português, o que explica de certa forma o "ódio" que alguns americanos nutrem por Egas Moniz (veja-se o caso mais recente da neta de uma paciente lobotomizada que criou um movimento com o objectivo de ser retirado o Prémio Nobel a Egas Moniz), de tal forma que não conseguem manter a postura e escrevem livros deturpando as fontes, como é o caso, por ventura o mais paradigmático e o mais grave, de Elliot Vallenstein, um professor de psicologia e neurociências da Universidade do Michigan que escreveu em 1986 «Great and desperate cures», um livro amplamente divulgado e frequentemente o encontramos em posição privilegiada na bibliografia de outros livros (p.e., Uma História da Psiquiatria - da Era do Manicómio à Idade do Prozac, de Edward Shorter) e sobretudo de cursos universitários de pré e pós-graduação (p.e., no curso de História das Ciências Humanas na Universidade de Sydney, o Dr. Hans Pols lecciona um semestre sobre História da Psiquiatria). Mais tarde voltaremos a Vallenstein. Por enquanto, o que importa referir é que há uma clara intenção na confusão de termos. É a lobotomia que a história recorda como uma coisa má. E por isso Egas Moniz é associado à lobotomia. Consciente ou inconscientemente. A verdade é que é. O rigor perde-se nas intenções. As falácias são de vários tipos: manobras de dispersão, apelo a motivos em vez de razões, falácias indutivas, da ambiguidade e da explicação ou simplesmente erros na definição. Tudo serve para condenar Egas Moniz a esse lugar ambíguo da história, o de um homem de maus instintos que ganhou o prémio Nobel à custa de um tratamento cruel. Para quem procurava há muito tempo uma cabala a sério, aqui têm uma. Para o pior, os americanos fizeram-nos acreditar que Egas Moniz foi mesmo um homem mau que andou por aí a furar o cérebro às pessoas em troca de um momento de glória e de um lugar na história. E nós acreditámos mesmo. E por isso vamos reproduzindo os erros porque, afinal, terá sido muito provavelmente a única coisa que nos ensinaram.

terça-feira, fevereiro 14, 2006

AS FALÁCIAS DA LEUCOTOMIA
Nota de abertura

Diria que é quase psicótico o discurso que se vai proferindo um pouco por toda a parte sobre a leucotomia pré-frontal. Cospem-se disparates com tanta convicção que mais uma vez a sabedoria popular se revela eficaz na caracterização: uma mentira repetida várias vezes torna-se verdade. Bem dito bem feito. Hoje, com a cagança que sabemos tudo o que os outros não sabiam e do alto da cátedra da moral e da ética, vamos reduzindo à insignificância uma figura ímpar na História de Portugal e na História da Medicina Mundial. Em grande parte essa redução é feita através de uma passividade quanto à reposição da verdade histórica. Permitimos que lá fora se diga praticamente o que se quiser sobre Egas Moniz sem que surja espontaneamente, ou não, um nonagésimo de pro-activismo no contraditório. Quer dizer. Lá fora e cá dentro. Sobretudo cá dentro. Sobretudo porque a conversa em torno de Egas Moniz acontece envolta de uma atmosfera falaciosa que favorece o discurso ad hominem. E isso nós sabemos fazê-lo como ninguém. Mas este blogue não surge como justiceiro ou vingador. Surge sim como caderno de apontamentos de tudo aquilo que encontrarmos sobre a leucotomia pré-frontal. Propomo-nos a atar e desatar todos os nós cegos, e esperamos no final produzir uma exegese rigorosa que coloque a leucotomia pré-frontal na correcta perspectiva histórica.

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